*Por Lu Tanno
Quando criança as proporções que o mundo assume são outras, traindo-nos a memória. Lembro-me de um homem altíssimo, sempre de poncho e chapéu anos 30, em tons invariáveis de preto-acinzentado trajados com uma elegância espectral.
Ele nos abençoava à moda antiga sobrepondo suas mãos em forma de prece às nossas, Deus te abençoe, um filho, e geralmente eu me sentava em seu colo ladeada por meus primos e irmãos menores.
No escuro, na frente de uma casa sem alpendre, ouvia suas narrativas que provavelmente engendrariam o amor platônico que carrego por este ser ideal, este protótipo mítico de cowboy sul-americano, o gaucho.
Era com despudorado afeto, que entre uma cuiada e outra de chimarrão, ele já contaminado pelo linguajar daqui, contava-nos histórias de honra e infâmia, de sua trajetória com seu comandante juramentado, Silvino Jacques, desde como ele havia saído do Sul por questões fiscais, alguma insurreição entre o Estado e estancieiros até o caudal final de seus dias.
Espanta-me ainda a naturalidade, talvez parte essencial da cosmogonia deste homem forjado na solidão dos Pampas, pela qual reportava a resolução de conflitos em uma época outra, a que dizia, o fio de bigode de um homem ter mais valia que uma assinatura.
Neste estado de coisas, sua fala criava um paradoxo para quem é proveniente da oposição da cidade ao campo, um mundo de excepcionalidades em que a bravura de um macho servia-se de dois mecanismos, um para perto, outro para longe, o punhal e o balaço.
A pouca idade, se por um lado tem a graça de nos obstaculizar sistemas morais de juízo de valores, por outro, também nos priva de certas preocupações historiográficas. Daí, meu ressentimento de nunca, entre meus quatro e nove anos, ter registrado tais fatos com maior precisão do que a nostalgia nos pode dar.
O que perdurou até os dias de hoje era uma excitação em ouvi-lo como quando enfrentou tocaias, balaços e outros homens de uma massa tão inverossímil quanto a dele. Aninhada em seu colo, entre o revólver e o punhal, em que pese a brandura com que me tratava, eu via tanto brio em seus olhos, que se fosse dada ou permitida a liberdade poética, ele teria outro fim que não o real.
O senhor Moura morreu quase aos oitenta anos de velhice e pobreza, a despeito de ter sido um homem muito rico e temido. Morreu em paz com os homens, com Deus e consigo mesmo, creio eu.
*Lu Tanno, escritora e produtora de TV