A quebra de uma rotina pode transformar a vida das pessoas – foi o caso de Jeferson Esdra de Arruda (35), conhecido pelo apelido de “Coca”, em sua comunidade que possui cerca de 17 famílias e aproximadamente 60 pessoas.
Jeferson nasceu e cresceu na região denominada Corixão, no Taquari – em pleno Pantanal Sul-Matogrossense – uma área de difícil acesso por conta dos leitos de água estreitos e rasos ( só passam embarcações de pequeno porte ) na região mais devastada pelo assoreamento do Rio Taquari, um dos maiores desastres ambientais provocados pelo homem, na história moderna brasileira.
O pequeno Jeferson estudou até a 1ª série na região do Taquari e depois disso foi até Corumbá para concluir seus estudos. Depois de algum tempo ele retornou, serviu o Exército e quando deu baixa do serviço militar começou a trabalhar nas embarcações da região. Então um dia ele conheceu o Programa Social “Povo das Águas” – uma ação mantida pela Prefeitura de Corumbá desde 2009 que visa levar atendimento médico, odontológico, assistência social e recursos para as comunidades ribeirinhas do Pantanal – e foi exatamente aí, que ele tomou uma decisão que mudaria toda sua vida, ao encantar-se com as atividades que levavam melhorias na qualidade de vida do seu povo: ele estudaria e conseguiria trabalhar na sua região como agente comunitário de Saúde da Prefeitura.
E assim foi. Logo ele começou a viajar e trabalhar com a equipe do Programa e começou a perceber uma certa dificuldade em localizarem as pessoas da comunidade ribeirinha:
“Os moradores do Pantanal não tem endereços como o povo da cidade, com números, nomes de ruas, bairros e CEP. Aqui todo mundo está distribuído em grandes áreas – e muitas dela com acesso apenas à cavalo ou em muitas horas de distância, em cima de uma “voadeira”. Localizar alguém por aqui sem ser daqui é algo bastante complicado,” explicou Jeferson
Segundo Jeferson, essa situação indesejada causava muitos transtornos para os moradores da região:
“Muitas vezes a gente chama por um socorro – por exemplo, a Marinha – e eles vinham aqui e iam embora sem prestar o socorro, porque não encontravam a localização informada. As pessoas são muito simples e muitas vezes passavam referências que a Marinha não tinha a mínima noção do que era, porque muitas dessas referências eram uma coisa só nossa”.-
Essa observação coincidiu quando Jeferson decidiu que seria um educador, em sua comunidade:
“Quando ingressei na Educação, esse foi o meu primeiro projeto. Eu quis juntar a Educação com essa necessidade em ajudar, fazendo algo pelas crianças e pela comunidade. Eu vi que existiam pessoas trabalhando pelas nossas famílias aqui e eu senti uma obrigação, um dever meu em ajudar em transformar a nossa realidade, também”.
Um acontecimento na época reforçou essa decisão de Jeferson:
Teve um rapaz que trabalhava no campo e sofreu um acidente, machucando seriamente a sua cabeça. O acidente aconteceu próximo à minha casa conseguiram levar ele até lá. Aí eu ligava para o pessoal da Saúde, para os médicos, para que eles me passassem qual seria o procedimento que deveríamos tomar em relação a ele, tudo por telefone. Para piorar as coisas, a emergência não tinha como chegar até nós, pelo porto – e mesmo que desse, ele não sobreviveria, porque estava sangrando muito. Aí eu pedi o auxílio da Marinha e com muito sacrifício conseguimos fazer com que o helicóptero pousasse no local certo. Eles não tinham conhecimento dessas referências que a gente da comunidade têm, coisas que a gente aprende desde criança, por aqui. Nós tínhamos que passar sempre a referência de uma fazenda mais próxima, por exemplo. Ele sobreviveu e hoje trabalha na cidade, mas esse acontecimento mexeu bastante comigo. Poderia ser comigo, com alguém da minha família. –
Sendo assim, Jeferson começou a realizar o trabalho de mapear a localização de cada família desde a saída de Corumbá até a sua região:
“Nós começamos a fazer esse trabalho em todas as residências nesse trajeto, pegando as coordenadas geográficas de cada casa e colocando essas coordenadas no mapa. Antes ninguém tinha um endereço fixo, agora todos têm”.
Segundo o educador, não foi uma tarefa fácil – ainda que todos os moradores tenham apoiado o projeto de Jeferson desde o início.
“Meu maior problema foram as dificuldades técnicas. Eu fui até a cidade e emprestei um GPS da Defesa Civil e aprendi a operá-lo. Mas aí era complicado inserir os dados no Google Earth, não temos internet disponível por aqui – então sempre tínhamos que depender de alguém para plotar esses dados no mapa, na internet”.
E o projeto de Jeferson não parou por aí. Ele passou a confeccionar carteirinhas de identificação com dados importantes como RG, CPF, número do SUS e as coordenadas geográficas da residência de cada morador da região:
“Não é um documento oficial, mas ajuda muito na hora de uma emergência ou no transporte das pessoas.”
De acordo com Jeferson, a “Carteirinha do Ribeirinho” já está ajudando a salvar vidas.
“Agora quando acontece uma emergência em uma determinada localidade, os moradores já passam os dados do GPS daquele local, facilitando o acesso rápido pelo helicóptero da Marinha. Isso porque quando terminamos de plotar todas as coordenadas das casas, nós imprimimos um mapa e deixamos lá no Esquadrão de Operações da Marinha, em Ladário”.
O carinho e a preocupação de Jeferson com sua comunidade rendeu frutos: pelo seu projeto, em 2016 Jeferson recebeu o prêmio de “Professor Inovador”, como o melhor projeto do Município:
“A idéia agora é expandir essa idéia para que ela seja aplicada em toda a comunidade ribeirinha pantaneira e não apenas na nossa região (do Taquari). A gente precisa expandir isso para todo o Pantanal, porque eu sei que outras pessoas também precisam disso, é uma necessidade que só o ribeirinho sabe como é. O Pantanal é muito grande, precisamos da ajuda do Município, do Estado, do Governo, da Marinha, do Exército, para que esse trabalho possa se concretizar’. –
Jeferson é casado e tem um filho de 12 anos que está na 7ª série. Sua esposa é merendeira na escola da comunidade – e eles não tem planos de um dia deixarem sua região:
“Mesmo que a cidade tenha outras coisas mais acessíveis, uma vida mais fácil, não é o meu clima. Aqui é tranquilo, a vida é mais barata, a gente vive livre que nem um pássaro. As pessoas daqui só vão para a cidade em caso de necessidade, como um tratamento medico ou ainda, porque não arrumaram um emprego. Não troco meu Pantanal por nada desse mundo. Eu quero e vou continuar trabalhando por aqui, até o fim dos meus dias”.
Jeferson é o segundo professor que a comunidade do Corixão fez florescer. Segundo o educador, o primeiro professor nascido na região é o Caetano Ribeiro de Arruda – que hoje encontra-se aposentado, mas continua dando aulas para as crianças locais. Essa aliás é uma atual frustração de Jeferson:
“Estou no último semestre de Pedagogia e por conta de uma alteração na legislação, eu não posso mais dar aulas até terminar meu curso. Eu fico triste, porque precisamos de professores por aqui e o Caetano é o único que está ativo na sala de aula, o que eu não acho justo, pois ele já está aposentado – e eu poderia estar ajudando-o, pois a demanda é grande. Mas enfim, é a legislação e eu tenho que aguardar pelo meu diploma – e assim que ele sair, eu darei aulas aqui. A Educação é a única ferramenta que tem o poder de transformar uma comunidade. Eu sou o exemplo disso”.
Sobre o apelido “Coca”, Jeferson ri:
“Eu não sei, eu era muito pequeno quando recebi esse apelido. Provavelmente eu gostava muito de Coca-Cola e todos achavam graça disso”.