O ASSUNTO É CINEMA, programa veiculado todas as quintas-feiras, a partir das 22 horas, na Rádio 104,7 Educativa e produzido pelos jornalistas Clayton Sales e Daniel Rockenbach, revisita o clássico brasileiro “Dona Flor e Seus Dois Maridos”. Ele conta a história de Florípedes Guimarães, conhecida como Dona Flor, dona de casa e professora de culinária que se tornou viúva. Seu marido era Valdomiro Guimarães, o Vadinho, vagabundo metido em jogatinas que maltratava a esposa, afanava o dinheiro que ela ganhava com as aulas, mas lhe satisfazia na cama.
Tempos depois, ela se casa novamente, desta vez com Teodoro Madureira, um distinto farmacêutico trabalhador e ótimo partido. Mas o sexo não era tão extraordinário. As coisas iam bem até que Dona Flor sentiu falta do extraordinário. Então, ela evocou o espírito de Vadinho, que retornou apenas aos olhos da viúva. E voltou do jeito que ela queria: sem apostas, sem malvadeza de marido abusador, apenas a safadeza sexual que ela tanto adorava.
O roteiro tem a assinatura do próprio Bruno Barreto, do lendário Eduardo Coutinho e de Leopoldo Serran, e é um belo exemplo de adaptação respeitosa do livro inspirador. Mantendo o espírito da escrita de Jorge Amado, eles encontraram uma maneira sóbria e inventiva de projetá-la na linguagem audiovisual. As soluções escolhidas foram, na maioria das vezes, acertadas, com exceção de um detalhe ofuscado pelo carisma do elenco principal.
Apesar dos ótimos trabalhos de Sônia Braga, José Wilker e Mauro Mendonça, faltou o sotaque baiano mais autêntico, algo que salta aos olhos nas páginas de Jorge Amado. Isso, porém, não isenta de elogios o trabalho de construção da personagem central da trama. Dona Flor era uma mulher comum a olhos superficiais pautados pela expectativa social sobre o papel feminino na sociedade.

Ela acaba encontrando em Teodoro o companheiro que não teve em Vadinho, parceiro inclusive na continuidade do seu empreendimento de lecionar culinária. Ou seja, Dona Flor era mulher plural e ninguém melhor para representa-la nas telas que Sônia Braga, já na época uma atriz muito versátil. Ela equilibra drama, sensualidade, simplicidade, força e doçura com uma desenvoltura marcante. Sem dúvida, um dos pontos altos do clássico nacional.
Porém, o principal destaque é a forma como Bruno Barreto desenvolveu o realismo mágico criado por Jorge Amado. No vórtice, está Vadinho, sem fantasmagoria, mas sim uma aparição naturalizada visto apenas pelos olhos de Flor em mais uma decisão autônoma de seu coração de mulher. Vadinho voltou, mas sem os traços de canalhice. Apenas o amante fogoso que levava Dona Flor ao êxtase.
Nesse aspecto, é digna de louvor a performance de José Wilker, também inserindo complexidades encantadoras a seu personagem. O roteiro consegue transpor para a tela as alternâncias temporais e os recursos de flashbacks são sensatos. Além disso, manteve diálogos carregados de expressões sabiamente usadas por Jorge Amado.
“Dona Flor e Seus Dois Maridos” é um filme grandioso, uma obra de arte do cinema nacional e uma respeitosa adaptação de um clássico da literatura. Drama com elementos precisos de comédia, o longa-metragem também levanta pontos maravilhosos sobre sincretismo religioso, onde a fé cristã é a norma social, mas o candomblé é o motor que determina o destino de Vadinho. Sobretudo, é um filme que escava a misteriosa alma feminina com direito à saborosas baianidades.