O Assunto é Cinema, programa veiculado todas as quintas-feiras, a partir das 22 horas, na Rádio 104,7 FM Educativa e produzido pelos jornalistas Clayton Sales e Daniel Rockenbach. Na última quinta-feira (8), o filme escolhido para análise foi “Homem com H”.
O filme “Homem com H”, exibido nos cinemas. O longa-metragem narra a história do cantor sul-mato-grossense Ney Matogrosso, desde a infância em Bela Vista e Rio de Janeiro até a consagração com um dos maiores nomes da MPB.
O roteiro foi escrito por Esmir Filho, baseado na biografia de Julio Maria, e a direção também é de Esmir Filho. Saltam aos olhos no filme os mesmos graus de ousadia e tom provocativo que marcam a personalidade de Ney Matogrosso. Ao mesmo tempo, transgressor, abusado e enérgico, o cantor exala uma intrigante serenidade, tudo embalado a uma explosiva sensualidade.
Portanto, roteiro e direção conseguem equilibrar essas facetas com habilidade e respeito sem perder a essência desafiadora. Afinal, Ney Matogrosso enfrentou diversas formas de autoridade, tanto no plano pessoal, como seu pai militar, quanto no institucional, como a censura, o puritanismo de fachada do conservadorismo nacional e a crítica implacável de setores da imprensa cultural.
Por isso, o filme é exitoso em salientar essas figuras de autoridade, posicionando-as como antagonistas frontais ao destemido Ney Matogrosso. No entanto, a produção evita o discurso maniqueísta, já que, longe de ser um herói homérico, o artista é um ser humano com suas peculiaridades. As reconstituições das várias épocas abordadas no longa são perfeitas, especialmente na fartura imagética do Secos & Molhados, traduzindo para nossos olhos o contexto visual da ditadura.
Nesse aspecto, a maquiagem é primorosa. A essência camaleônica de Ney Matogrosso exige e ganha excelente representação. Elementos como fotografia, movimentos e enquadramentos de câmera parecem caminhar sob um conceito de brilho e treva, com pontos de luz arrebatadora e escuridão misteriosa. Complementam-se aberturas paisagísticas exuberantes e closes penetrantes, que perfazem uma proposta de dualidade.
A escolha das músicas e como foram inseridas merecem aplauso. Sem apelar ao expediente preguiçoso de usar canções para preencher tempo, as mais representativas são entremeadas de cenas breves, precisas e significativas da biografia de Ney. Ou seja, além de dinamizar o ritmo, a trilha sonora oferece contexto à jornada pessoal do cantor.
Entre tantos pontos altos, Jesuíta Barbosa é o mais notável. Sua atuação abraça a complexidade única de Ney Matogrosso com desenvoltura. A impavidez casada com a abundância de expressões de rosto, corpo e voz são conjugados com precisão e, principalmente, com caudalosa intensidade. O elenco coadjuvante também merece destaque pois orbita em torno de Ney mas consegue ressaltar a importância de cada personagem na trajetória do artista.
Outro ponto é o uso equilibrado do erotismo homoafetivo, o que requer uma sabedoria e coragem. No país que é um dos que mais mata pessoas LGBTQIA+, abordar as paixões e rebeldias libertárias do Ney Matogrosso jovem com a mesma lente que uma relação heterossexual requer bravura. Tudo é feito com audácia e bom senso, sem amarras, nem apelação barata.
A bissexualidade é parte vívida da história de Ney. Além disso, a obra corrige a terrível falha de outra cinebiografia. “Cazuza – O Tempo Não Para” (2004) omite a relação com Ney Matogrosso. Já “Homem com H” salienta a importância do cantor para a vida e a carreira de Cazuza.
Por essas e outras, “Homem com H” é um filme sensacional, sensato quando deve ser e escandaloso nos instantes certos. E não haveria outra maneira de retratar um artista tão único como Ney Matogrosso. Além disso, a obra suscita várias reflexões oportunas sobre sentidos da arte, moral, sexualidade, mercado da música, enfrentamentos políticos e sobretudo liberdade. A verdadeira liberdade conquistada com destemor e perspicácia por um artista “selvagem” e sensível inscrito nas páginas da cultura nacional.
E o melhor: ainda em vida e arrasando nos palcos com a mesma alma. O filme nos traz tudo isso por meio de uma experiência arrebatadora, espantosa e catártica. E “Homem com H”, título de um dos principais sucessos do cantor, é o nome ideal para o longa. Afinal, entre rastro de cobra e couro de lobisomem, Ney Matogrosso triunfou e deixa um legado de poder e autenticidade na arte e na vida.
Confira o trailer oficial: