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25 de abril de 2024 - 13:27

‘Galos’

*Por Raquel Naveira
Meu tio que morava na fronteira, num sítio chamado “Vingança”, era fascinado por rinhas de galo. Criava galos de vários tipos e cores. Tinha orgulho de suas esporas, de suas caudas compridas. Criava-os para a morte, gladiadores para sua arena, que ficava ali, perto do poço.
As rinhas de galo atraíam muita gente: homens rudes, vampiros de olhos injetados, acostumados a castrar boi, a arrancar couro, a ver tripas de fora. Algumas mulheres assistiam às lutas com as veias saltadas, as mãos crispadas, espantadas com aquele jogo semelhante a sexo bruto. As crianças eram afastadas, mas sentiam o clima de um mundo feroz, feito de raiva crua, de potência, de violência escarlate. Atiçavam os galos um contra o outro; a cólera crescia; o desempenho das aves no combate era cheio de fúria e desejo desmesurado. A pele de algumas pessoas, toda eriçada, assemelhava-se à pele dos galos esfolados, já sem penas. Depois do sacrifício, sentavam-se, repartiam as apostas, o suor borbulhando como cerveja. A tarde vermelha afogava suas mágoas no crepúsculo, manchada de sangue inocente.
O galo, guerreiro vigilante perante o horizonte, alma atenta, consagrada aos astros, espírito que se levanta na madrugada, remete-nos ao poema “Tecendo a Manhã”, de João Cabral de Melo Neto: “Um galo sozinho não tece uma manhã:/ ele precisará sempre de outros galos,/ De um que apanhe esse grito que ele e o lance a outro;/ de um outro galo/ que apanhe o grito de um galo antes e o lance a outro;/ de outros galos/ que com muitos outros galos se cruzem os fios de sol de seus gritos de galo,/ para que a manhã, de uma teia tênue,/ se vá tecendo, entre todos os galos”. Linda essa imagem do galo poeta, em sua supremacia espiritual, espalhando seu canto que faz despertar o homem que está em trevas para a luz, para a esperança de um novo dia.
Os galos cantam religiosamente por volta da meia-noite e mais tarde, ao amanhecer. A que horas terá cantado aquele galo que o discípulo Pedro ouviu após negar Cristo? Lembrou-se das palavras que o mestre lhe dissera: “_ Em verdade te digo que esta noite, antes que o galo cante, menegarás três vezes.” Pedro chorou amargamente. Com orgulho, soberbo, sem conhecer a si mesmo e às suas fraquezas, havia replicado: “_ Ainda que seja necessário morrer contigo, de nenhum modo te negarei.” E negou, e mentiu e disse que não conhecia aquele homem que fora preso pelos soldados romanos, que não andava com ele, que não verteria seu sangue por ele, que o levassem para seu destino de morte e de cruz. Jurou, praguejou, diante do lume do fogo. Até que o galo cantou. A trombeta postada nos baluartes da torre tocou anunciando a vigília da noite. Fora um covarde. Tropeçara. A consciência o acusa. Lágrimas de arrependimento, de luto e consolo escorrem por sua face.
Os galos são tão belos e altivos! O galo branco com a crista rubra de um mandarim transmite bondade, confiança, coragem. Que triste a recordação daqueles bárbaros assassinatos na fronteira. Para surpresa do público, Jânio Quadros proibiu as rinhas de galo num de seus polêmicos decretos como presidente enlouquecido, destituído do poder por forças ocultas. Mas as brigas continuaram em sanhas clandestinas. Presenciei rinhas de galo. Sentia uma compaixão imensa pelos galos; por meu tio, que eu amava tanto e pela humanidade inteira.
*Raquel Naveira é escritora e faz parte da Academia Sul-Mato-Grossense de Letras

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