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20 de abril de 2024 - 09:19

Açúcar sem afeto

Theresa Hilcar*

A avó adorava frases feitas, ditados populares e aforismos. Gostava mais ainda de fazer vaticínios. Ou seria melhor dizer – previsões assustadoramente pessimistas. Quase uma sentença.

Se a vida de uma pessoa não é o que lhe acontece, mas aquilo que recorda – e a maneira como o recorda, como disse Gabriel Garcia Márquez, a avó é meu livro de cabeceira. E só fui descobrir isto, por mero acaso, quase num susto.

Foi atravessando a Avenida Afonso Pena, quando me desviei de um carro desavisado, que me lembrei da frase que, como percebi logo depois, estava grudada em mim feito tatuagem: “Para o peixe que és o molho está passando de bom”.

É incrível, na falta de palavra melhor, como realmente esquecemos algumas coisas e lembramos outras, que muitas vezes nem são verdadeiras, mas fantasias. Como ouvi recentemente de um mestre: “quanto maior a dor, maior o esquecimento”. Sempre pensei escrever um romance onde a primeira frase fosse exatamente algo que ouvi na infância e, claro, dita pela avó: “Filho de peixe, peixinho é”. Ouvi isto durante um bom tempo, até que me cansei. Ou por certo, gravei para sempre na memória. Eu seria igual aquele anoiteceu e não amanheceu. Igual ao pai que foi embora, antes que eu pudesse dizer seu nome.

Dona Maria, mulher simples, embora criada em família de posses, talvez não soubesse da sua crueldade. Nem do estrago de suas palavras. Por isto seu repertório era imenso, inesgotável. Bastava deixar cair uma xícara, acordar fora da hora, falar sem autorização, que lá vinham as sentenças de quase morte. “Mente vazia, oficina do diabo”; “Quando um Burro fala o outro murcha a orelha”; “Quem não emenda se remenda”; terminando sempre com o tradicional peixinho.

O avô, mais letrado, olhava de rabo de olho, mas não dizia nada. Do contrário sobraria para ele. Num canto, a mãe suspirava impotente. A biblioteca da escola e o cinema do avô eram meus refúgios e minha salvação.

Por uma dessas estranhezas da vida, minha avó sabia ler, mas mal assinava seu nome. Embora treinasse sempre com um toco de lápis no papel de pão. Quando meu nome começou a aparecer nos jornais da capital, em notas sociais e concursos de beleza (moda na época), dona Maria que era dos Santos, mas não era anjo, lançava seus torpedos. “Quem vê, pensa que é grande coisa”. Meu sobrenome lhe causava – como ela mesma dizia – ojeriza.

A invenção do pai, cuja mirabolante ideia era fundar uma nova família, dava arrepios. “Até parece!” E ria a valer repetindo letra por letra. Eu achava aquilo bobagem, coisa de gente atrasada, e aparentemente nunca liguei. Mesmo quando, na minha vez de rir muito, de felicidade ou de bobagens, ela vinha sempre com a mesma história: “Muito riso sinal de choro”.

E quando dei por mim, havia trocado uma simples alegria pelo medo. E depois de tantas questões discutidas, abordagens métodos – clássicos e não ortodoxos – e vários anos de interrogação, descubro, não sem surpresa, que comecei a negar e a temer qualquer traço de felicidade. Tudo para não aborrecer a avó, nem perder o meu quinhão diário de açúcar.

Afinal, era por meio de seus quitutes, bolos e doces, que eu alimentava minha carência. E embora ela os mantivesse trancados a sete chaves, longe das minhas mãos de menina, isto não me impediu de crescer adicta. Acho que os vícios começam cedo, e quase sempre por afeto. E sempre com açúcar.

(*) Theresa Hilcar é jornalista e escritora (crônica publicada no jornal Correio do Estado)

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