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Institucional

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15 de outubro de 2024 - 23:32

Lei Maria da Penha: Quando a agressão parte da mulher

Denis Schlang Rodrigues Alves*

O presente estudo visa analisar, sob a ótica jurídica, os casos em que, eventualmente, possa o sujeito ativo da Lei Maria da Penha ser pessoa do sexo feminino.

1 – Introdução
Muito se discute, atualmente, se uma mulher pode figurar como autora na violência doméstica e familiar contra uma outra mulher, caso em que se aplicaria a Lei 11.340/06 (Lei Maria da Penha) para a sua defesa com as consequentes medidas disponibilizadas de proteção à vitima, notadamente a concessão das medidas protetivas de urgência, insculpidas nos artigos 22, 23 e 24 do mencionado diploma legal.

Nesse viés, impende ressaltar que no tocante aos casos de união homoafetiva entre mulheres resta transparente a possibilidade de aplicação da Lei 11.340/06, em ocorrências de delitos praticados por uma mulher contra a sua companheira homoafetiva, mormente por força do artigo 5º, parágrafo único, da referida lei.

Todavia, nos demais casos de violência doméstica e familiar contra a mulher, no quais a autoria venha a ser atribuída à uma outra mulher, extrai-se o entendimento que será a seguir estudado.

2 – Da violência doméstica e familiar contra a mulher baseada no gênero
Inicialmente, insta frisar que a Lei 11.340/06 foi criada para proteger a mulher em razão da sua inferioridade ou vulnerabilidade em relação ao agressor de modo que, a princípio, a mulher jamais poderia figurar como autora de qualquer delito que estivesse figurando como vítima uma outra mulher, conforme se depreende da leitura do artigo 5º da citada lei, in verbis:

Artigo 5º: Para os efeitos desta lei, configura violência doméstica e familiar contra a mulher qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial (…).

Nesse diapasão, visando esclarecer o que se entende pela violência de gênero mencionada na Lei Maria da Penha, o ilustre jurista Edison Miguel da Silva Jr, passou a explicá-lo da seguinte forma:

“(…) aquela praticada pelo homem contra a mulher que revele uma concepção masculina de dominação social (patriarcado), propiciada por relações culturalmente desiguais entre os sexos, nas quais o masculino define sua identidade social como superior à feminina, estabelecendo uma relação de poder e submissão que chega mesmo ao domínio do corpo da mulher”[1].

Destarte, resta cristalina a intenção da lei em proteger a mulher contra o sexo oposto, eis que o artigo 5º do aludido mandamento legal estabelece ser violência doméstica e familiar contra a mulher qualquer ação ou omissão baseada no gênero, ou seja, a violência exercida pelo homem sobre a mulher em uma relação de poder e submissão.

Ademais, com a devida vênia aos entendimentos contrários, caso fosse aplicada a Lei 11.340/06 à toda e qualquer mulher que tenha sofrido um crime por uma outra mulher em âmbito doméstico e/ou familiar, sem que tenham relação homoafetiva, ao total arrepio da lei, seria realizado o esvaziamento conceitual em que está situada a grave nódoa da violência de gênero, de modo que, em não havendo configurados os elementos necessários à aplicação legítima da Lei 11.340/2006, estaria sendo permitida a realização de diferenciações injustificadas que iria de encontro ao valor supremo constitucional da isonomia, como bem leciona o eminente doutrinador Guilherme de Souza Nucci, senão veja-se:

“(…) interpretar o mencionado artigo 5º, ignorando a exigência da relação de gênero para qualificar a conduta ou simplesmente atribuir ao termo gênero o mesmo significado de mulher, violaria o princípio constitucional da igualdade de sexos, pois ‘o simples fato de a pessoa ser mulher não pode torná-la passível de proteção penal especial’ (NUCCI, 2007:1043). Enfim, sob pena de inconstitucionalidade, violência doméstica não se confunde com violência de gênero[2]”.

3 – Do requisito da existência da situação de vulnerabilidade da vítima frente ao agressor ou a motivação de gênero para a aplicação da Lei 11.340/06 
Nesse cenário, vale salientar que ainda que existam entendimentos no sentido de ser possível o sujeito ativo da violência doméstica ser mulher, fato é que para tanto é necessário o requisito da existência da situação de vulnerabilidade da vítima frente ao agressor ou a motivação de gênero, tendo, como motivação, dessa forma, a opressão à mulher (fundamento de aplicação da Lei Maria da Penha), e não apenas a ocorrência de uma simples agressão moral, física, psicológica ou patrimonial da vítima em razão de desavenças, conforme já se manifestou diversos pretórios pátrios, principalmente o egrégio Superior Tribunal de Justiça. Nesse sentido:

[…] 1. Delito de lesões corporais envolvendo agressões mútuas entre namorados não configura hipótese de incidência da Lei 11.340/06, que tem como objeto a mulher numa perspectiva de gênero e em condições de hipossuficiência ou vulnerabilidade. 2. Sujeito passivo da violência doméstica objeto da referida lei é a mulher. Sujeito ativo pode ser tanto o homem quanto a mulher, desde que fique caracterizado o vínculo de relação doméstica, familiar ou de afetividade, além da convivência, com ou sem coabitação. 2. No caso, não fica evidenciado que as agressões sofridas tenham como motivação a opressão à mulher, que é o fundamento de aplicação da Lei Maria da Penha. Sendo o motivo que deu origem às agressões mútuas o ciúme da namorada, não há qualquer motivação de gênero ou situação de vulnerabilidade que caracterize hipótese de incidência da Lei 11.340/06[3].

[…] 2. Com efeito, tenho que, inicialmente, não se pode enquadrar a conduta dos pacientes como sendo de violência doméstica ou familiar, já que a relação entre réu e vítima não se enquadra entre as previstas no artigo 5º da Lei 11.340/2006; 3. Ainda que assim não fosse, no caso, a Lei 11.340/06 não seria aplicada, pois não se cuida de situação relacionada a vulnerabilidade, hipossuficiência, inferioridade física ou econômica existente entre agressor e vítima. Não havendo hipossuficiência e/ou vulnerabilidade entre as partes, não há o menor risco de motivo que enseje a aplicação da legislação penal especial; 4. Dessa forma, está-se a tratar, em tese, diante do delito previsto no artigo 147, caput, do Código Penal, que prevê pena de detenção de 1 a 6 meses. Assim, a competência para julgar o fato é do Juizado Especial Criminal; 5. Ordem concedida para que os autos sejam da representação sejam encaminhados ao juizado especial competente[4].

PROCESSO PENAL. CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO. JUIZADO DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR CONTRA A MULHER E JUIZADO ESPECIAL CRIMINAL. MAUS-TRATOS. MÃE E FILHA. VIOLÊNCIA DE GÊNERO NÃO DEMONSTRADA. COMPETÊNCIA DO JUÍZO SUSCITADO PARA PROCESSAR E JULGAR O FEITO. 1. A lei 11.340/2006 é de aplicação restrita e deve incidir apenas quando a ação ou omissão que configurem a violência doméstica e familiar possuam motivação de gênero e há uma situação de inferioridade ou vulnerabilidade da ofendida em relação ao agressor. 2. Se os maus tratos infligidos à criança do sexo feminino decorrem da vulnerabilidade decorrente da condição de filha, em face da sua criação e educação, sem qualquer conotação motivada pelo gênero mulher, não há aplicação da lei maria da penha. 3. Conflito conhecido para declarar competente o juízo suscitado[5].

CONFLITO NEGATIVO DE COMPETÊNCIA. LEI “MARIA DA PENHA” (LEI 11.340/06). COMPETÊNCIA PARA PROCESSAMENTO E JULGAMENTO DE AMEAÇA E/OU VIAS DE FATO DE FILHA CONTRA MAE. VIOLÊNCIA NÃO BASEADA EM GÊNERO. 1. O Juiz suscitante alega que a competência é do Juizado Especial Criminal, em razão da igualdade de gênero entre vítima e suposta agressora, ao passo que o suscitado aduziu que é da 4ª Vara Criminal, por se tratar de violência doméstica atinente à Lei Maria da Penha. 2. Não incide a Lei 11.340/06 em suposta ameaça e/ou vias de fato envolvendo filha e mãe pela ausência violência baseada no gênero. CONFLITO DE COMPETÊNCIA PROCEDENTE[6].

RECURSO EM SENTIDO ESTRITO. CONTRAVENÇÃO PENAL. PERTURBAÇÃO DE TRANQUILIDADE. AUSÊNCIA DE QUESTÕES DE GÊNERO. RELAÇÃO FAMILIAR ENTRE MÃE E FILHA, QUE, POR SI SÓ, NÃO ENSEJA A APLICAÇÃO DA LEI MARIA DA PENHA. COMPETÊNCIA DO JUIZADO ESPECIAL CRIMINAL. O caso em tela remete a situação em que a filha da vítima, após dirigir-se embriagada a sua residência, teria começado a ofendê-la, em voz alta, sendo que as palavras teriam sido ouvidas pelos vizinhos, causando constrangimento na vítima. As suspeitas que recaem sobre a recorrida não revelam prevalecimento de relações de gênero apenas porque ocorreram em ambiente familiar. O fato de a vítima ser do sexo feminino não foi decisivo para a prática do delito. Como instrumento de combate a uma violência historicamente sedimentada, a Lei 11.340/2006 almeja muito mais do que a ampliação do âmbito de aplicação da lei penal ou do que a judicialização dos conflitos domésticos. Competência do Juizado Especial Criminal e não do Juizado da Violência Doméstica e Familiar. RECURSO EM SENTIDO ESTRITO DESPROVIDO. UNÂNIME[7].

EMENTA: CONFLITO NEGATIVO DE COMPETÊNCIA LESÃO CORPORAL DE ÂMBITO FAMILIAR – ART. 129 § 9º DO CP – CRIME SUPOSTAMENTE PRATICADO PELA FILHA CONTRA A MÃE – NÃO EVIDENCIADA SITUAÇÃO DE FRAGILIDADE OU VULNERABILIDADE PROVENIENTE DO GÊNERO MULHER INEXISTÊNCIA DE RELAÇÃO DE SUBORDINAÇÃO A AGRESSÃO TERIA OCORRIDO APÓS UMA DISCUSSÃO POR MOTIVO BANAL, EM RAZÃO DE UM VIDRO DE ACETONA QUE A FILHA HAVIA PEGADO EMPRESTADO DA MÃE, QUE AO SABER, RETIROU DE SUAS MÃOS – INAPLICABILIDADE DA LEI 11.340/06 – COMPETÊNCIA DO JUÍZO DA 32ª VARA CRIMINAL DA CAPITAL. Conflito negativo de competência suscitado pelo I Juizado de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher da Capital, apontando como competente o Juízo de Direito da 32ª Vara Criminal da Capital. Tratando-se de suposta lesão corporal de filha contra a mãe, no interior de sua residência, podemos falar que existe vínculo afetivo entre as envolvidas, porém, a violência não se deu em razão da vulnerabilidade da mãe, mas sim, em razão de uma discussão entre as duas, o que afasta o procedimento elencado na Lei Maria da Penha. Isto porque os fatos narrados na exordial não revelam uma relação de dominação-subordinação da mãe com sua filha. Também não restou evidenciada a situação de vulnerabilidade experimentada pela suposta ofendida, não havendo qualquer ligação com a violência que o legislador pretendeu coibir com o advento da Lei Maria da Penha. PROCEDÊNCIA DO CONFLITO, firmando-se a competência do Juízo Suscitado[8].

4 – Da conclusão
Face ao exposto e considerando a doutrina e jurisprudência pátria, tal como já alhures abordada, entendo que, fora da situação da união homoafetiva prevista no artigo 5º, paragrafo único da Lei 11.340/06, a mulher somente pode figurar como autora de violência doméstica e familiar contra uma outra mulher, no caso da existência da situação de vulnerabilidade da vítima frente à agressora ou em razão da motivação de gênero, ou seja, havendo necessariamente como motivação da violência a opressão à mulher, caso em que se aplicaria o aduzido diploma legal com os seus diversos dispositivos de proteção à vítima.

(*) Denis Schlang Rodrigues Alves é delegado de polícia em Santa Catarina. Pós-graduado em Direito Penal pela Universidade Paulista, é professor na Universidade do Contestado e na Fundação Universidade para o Desenvolvimento do Alto Vale do Itajaí (Unidavi).

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